Tornei-me uma foodie. Uma foodie é alguém que gosta muito de comida, de ver, de preparar, de comer. Gostar é quase amar, é assim como um fogo que arde sem se ver. Ou seja, foodie não apenas como paixão platónica e funcional, desconstruída e abstractizante, e sim como lírico e camoniano amor. Se, depois do abstractizante e do desconstruído, os leitores ainda estão comigo, podem continuar, prometo que não volta a acontecer.
Foodie. Ou, como diriam os ingleses vistos na perspectiva do saudoso Laurodérmio (ressuscitado no DVD da série do "Herman Enciclopédia", de longe a melhor coisa que se fez em Portugal em humor, a mais inteligente, a mais revolucionária, a mais obscenamente livre), "da fóóóodai". Ou, como diriam os verdadeiros ingleses, "da fuuuedie". Um foodie, ou uma foodie, não pode ser confundido com o guloso ou a sua forma mais extrema e prevaricadora, o glutão. O foodie não é gordo, não é gorduroso e não é fácil de aturar, porque é exigente. Não é vegetariano, nem biológico, nem macrobiótico, nem orgânico. Não é verde, nem vermelho, nem ecologista, nem transgénico. É alguém que compra alimentos frescos, que aprecia mercados como La Boqueria, de Barcelona, e que foge de hipermercados e ultracongelados. É alguém que não gosta muito de muitos restaurantes, a não ser, como na anedota, pelo convívio. Quando digo restaurantes não estou a falar de estrelas Michelin nem de listas elitistas, estou a falar de restaurantes normais, sendo certo que prefiro uma tasca de ruela e vinho da casa e um restaurantezinho familiar escondido no meio do sobrado e da cal do Alentejo às espumas e rendas carbónicas de Ferran Adrià. Embora um Château d'Yquem seja um Château d'Yquem. O foodie tem geografia sentimental. E hábitos. Um foodie prefere passar fome a comer depressa e em pé.
Muitos restaurantes nem sempre estão à altura da gastronomia portuguesa, com reconhecidas excepções. Não sabem temperar uma salada, não sabem usar especiarias, não sabem usar o frigorífico, não sabem prescindir do pão eléctrico e vácuo, não sabem a diferença entre cru e curado, não sabem comprar peixe nem carne, não se interessam pelos pormenores. E os pormenores são a substância. Cavam-se abismos entre frango de aviário, galinha do campo e pintada, entre vazia, lombo e bochecha, entre captura e aquicultura, entre sol e estufa, entre azeite virgem e óleo, entre manteiga e margarina, entre sal e flor de sal, entre orégão seco e orégão ressequido, entre pimenta em grão e moída, entre café brasileiro e colombiano, entre tripa e morcela, entre linguiça e farinheira, entre chocolate preto e manteiga de cacau, etc., etc.
Comer melhor não significa comer mais caro. Significa tempo e paciência. A comida orgânica teve anos de má reputação. Tudo era murcho, amarelado e decadente. A maçã era pequenina e bichada, a uva era aguada, a carne era incolor, insípida e inodora, os ovos eram brancos e brancos em vez de amarelos e brancos. Hoje, a comida orgânica, sem aditivos nem conservantes, sem químicos nem pesticidas, é de grande qualidade. Pode ser cultivada numa escala de jardim. Dois palmos de terra bastam para as ervas. Manjericão (o tomate sem o manjericão fica viúvo), estragão, salsa, hortelã, rosmaninho, funcho, segurelha... e cuidado com os caracóis.
Em Londres, existem várias lojas do empório Whole Foods, uma cadeia que nasceu na Califórnia e que pertence a uma filosofia foodie que descende da senhora Alice Waters, fundadora do restaurante californiano Chez Panisse. Waters dedica-se agora a fazer com que as escolas americanas comecem a adoptar menus saudáveis em vez de fast food e doces de fábrica. Os foodies, bem entendido, são adeptos da slow food, da comida com vagar e sem linhas de montagem.
Nos mercados Whole Foods encontra-se tudo e tudo é bom e fresco. Os fornecedores, da carne à fruta, do peixe aos secos e molhados, contam a história das suas quintas e da sua relação com o que fazem. Há revistas, receitas, cursos de cozinha, provas de vinhos, encontros de foodies, palestras e viagens. Como um clube, exactamente. Com site na Internet.
Uma educação sobre o que comemos sem o proselitismo desagradável. Na minha infância, quase toda a comida era assim. Whole. Uma gema de ovo batida com cerveja preta, canela e açúcar amarelo dava um lanche. Os pêssegos sabiam a néctar e no Outono confeccionavam-se compotas com a fruta mole. Quem provou um doce de figo e paus de canela ou de abóbora amarela, sabe do que falo. Morno. Espalmado em fatias de pão de trigo. Huummm. Ver o filme "Julia e Julie", de Nora Ephron, sobre Julia Child, é o presente de Natal do foodie. Delicioso. Delicious. Ou, como diriam os ingleses, "delaichoses".
Texto publicado na edição do Expresso de 19 de Dezembro de 2009
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